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Comida ou ritual: o que realmente alimenta a alma brasileira?

Por Ruth Vânia Feitosa e Roberta Diniz


De onde vem o sabor que mistura fé e tradição nas mesas brasileiras? A resposta está na herança culinária construída desde a colonização portuguesa, quando o catolicismo se expandiu e se encontrou com as tradições afro-brasileiras. Nesse encontro, a comida passou a ser memória, símbolo de espiritualidade e marca de identidade cultural, fortalecendo seu papel como expressão simbólica de uma comunidade.Essa mistura tem início no período colonial, quando Portugal trouxe o catolicismo e alimentos como o pão e o vinho, que passaram a ser utilizados na consagração e ganharam significado religioso como símbolos da comunhão e da nova aliança. Ao mesmo tempo, os povos africanos escravizados preservavam seus rituais e receitas, mesmo sob repressão, mantendo a comida como elo com a fé e a ancestralidade.

Reprodução: Freepik


Nisso Túlio Oliveira, gastronômico e especialista em comida brasileira, conta


“A gastronomia pode ajudar a contar a história de resistência e identidade de comunidades religiosas principalmente ao compreender as transformações e adaptações que esses grupos realizam no contexto da sacralização da alimentação, a partir de sua relação com a realidade material da vida.”

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Túlio Oliveira

Reprodução: Arquivo Pessoal


Assim a comida não é só alimento, mas também fé, símbolo e tradição. Na tradição católica além do pão e vinho, é comum o uso no peixe durante a Quaresma, um período de abstinência da carne, levando como valor simbólico uma penitência para purificação até a comemoração da ressurreição de Jesus, a Páscoa. Nisso Vanêssa Almeida, Coordenadora do Conselho Paroquial de Pastoral (CPP), conta que a comida:


“É um sustento pela dádiva de Deus, para que possamos ser sustentados por completo, alinhando a saúde física e espiritual”


Assim como comenta que o período de quaresma:

“É a preparação para purificarmos e lembrar-nos da nossa fraqueza, ajuda a

recordar o sofrimento que Cristo passou.”

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Vanêssa Almeida

Reprodução:Arquivo Pessoal


Dessa forma, esses alimentos que participam da vida cultural das pessoas e da vivência religiosa, conectam elementos como o cotidiano, cultura e religiosidade.


Ao explorar a conexão entre o cotidiano e a religiosidade, destacam-se pratos de origem afro-brasileira que se tornaram símbolos de identidade cultural e resistência. Entre eles estão o acarajé, preparado em devoção a Iansã; o vatapá, tradicional nas celebrações de São Cosme e Damião; a feijoada, associada a Ogum; e o pintado, oferecido a Oxum. Esses alimentos preservam, até hoje, as marcas do encontro entre culturas e espiritualidades. Em rituais realizados nas tendas espirituais, esses são oferecidos como forma de agradecimento às entidades divinas ou ancestrais.


Além dos pratos, também podem compor as oferendas frutas, flores, incensos, água

e outros elementos escolhidos conforme as características e preferências de cada

divindade.

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Frutas utilizadas nos rituais

Reprodução: Arquivo Pessoal do Pai José


Com 39 anos de dedicação ao candomblé, o Pai José fala que as oferendas vão muito além de simples gestos religiosos. Elas representam momentos de comunhão, de conexão profunda com os orixás e com a ancestralidade que sustenta essa fé.


Pai José deixou claro que cada oferenda carrega um significado único, moldado pelas festas e pelas divindades que são celebradas. Há todo um preparo ritualístico, um cuidado minucioso com os elementos escolhidos — alguns vindos do mercado, outros da natureza — sempre respeitando os fundamentos de cada orixá.


Afirma, Pai José:

“A comida deve sempre ser mantida como folclórica e com a nossa fé viva da nossa

comunidade, da nossa ancestralidade que foram mantidas com a gente.”

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Pai José ao lado de Altar Religioso

Reprodução: Arquivo Pessoal


Mais do que tradição, essas práticas são expressões vivas de uma espiritualidade que resiste ao tempo. São parte do folclore brasileiro, sim, mas também são manifestações de uma fé que pulsa nas mãos de quem prepara, nos cantos entoados, nas cores e nos sabores compartilhados. Manter essas oferendas vivas é manter viva a memória de um povo, sua cultura e sua força ancestral.


Contudo o gastrônomo Túlio Oliveira reforça:

“Nas religiões de matrizes africanas, ocorre algo semelhante: determinados santos impõem interdições sobre alimentos como dendê, farinha ou abóbora. Por outro lado,alimentos consumidos no contexto ritualizado ou sagrado também se tornam símbolos de fé. Exemplos incluem o pão, a hóstia e o vinho no cristianismo, ou pipoca, farofa, dendê, acarajé, aluá e efó em celebrações africanas.”


Portanto é importante ressaltar que a herança culinária do catolicismo e das tradições afro-brasileiras revela que comer é também um ato de memória. Cada receita, cada ingrediente, carrega símbolos que falam de fé, resistência e pertencimento. Assim, o prato na mesa é mais do que sabor: é a expressão de uma identidade coletiva que atravessa séculos e segue fortalecendo a cultura brasileira.

 
 
 

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